Curso de multiplicadores reúne pescadores, lideranças comunitárias e pesquisadores para fortalecer o manejo participativo do pirarucu na Amazônia

Publicado em:  4 de agosto de 2025

Iniciativa reúne representantes de diferentes regiões amazônicas para trocar experiências, fortalecer o protagonismo comunitário e difundir o manejo participativo do pirarucu

Entre os dias 15 e 25 de julho, o Instituto Mamirauá realizou a 14ª edição do Curso de Gestão Compartilhada dos Recursos Pesqueiros com foco no manejo de pirarucu. A iniciativa faz parte do projeto Entre Águas Amazônicas, que conta com financiamento do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), implementação do Instituto Mamirauá, execução do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e tem como agência a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). O objetivo do evento é formar multiplicadores do conhecimento sobre o manejo participativo do pirarucu (Arapaima gigas) em ambientes de várzea, reunindo pescadores, gestores, técnicos, pesquisadores e representantes de associações comunitárias de diversas regiões da Amazônia.

A programação contou com um rico intercâmbio de experiências teóricas e práticas, abordando todas as etapas do manejo do pirarucu: organização coletiva, definição de regras de uso, zoneamento, vigilância territorial, monitoramento do estoque pesqueiro, pesca, comercialização e a repartição dos rendimentos oriundos da pesca.

O manejo sustentável e participativo do pirarucu

O manejo do pirarucu começou a ser implementado em 1999, em caráter experimental, motivado pelo declínio drástico da espécie na região. A proposta nasceu como resposta ao desafio de recuperar os estoques, garantir segurança alimentar, gerar renda, estimular a pesca sustentável e melhorar a qualidade de vida das famílias que dependem diretamente da pesca na várzea amazônica.

Desde então, o manejo vem sendo construído coletivamente, através dos conhecimentos tradicionais e do apoio técnico do Instituto Mamirauá, permitindo que as comunidades permaneçam em seus territórios, vivendo dos recursos naturais e, ao mesmo tempo, conservando-os para as gerações futuras. Passados 25 anos da implementação do manejo, a população de pirarucus está recuperada nas áreas manejadas, além de ser percebida maior organização social e geração de renda para as comunidades.

Partindo do princípio de que o recurso é coletivo entende-se que o manejo também deve ser participativo, e os pescadores passam a assumir responsabilidades que vão além da pesca: elaboram regras, promovem reuniões de planejamento, monitoram os estoques e realizam vigilância territorial, garantindo que haja peixe não apenas para o presente, mas também para o futuro.

Para Ana Cláudia Torres, coordenadora do Programa de Manejo de Pesca do Instituto Mamirauá, “a sociedade quer colocar o produtor numa caixinha: é agricultor, é pescador. Mas quem vive na floresta sabe que vive de tudo. Por isso, o manejo precisa ser participativo, construído a muitas mãos”.

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Fotos: Julia Rantigueri

Curso de multiplicadores: história e importância

Realizado desde 2008, o curso de multiplicadores já passou por várias adaptações para ampliar seu alcance e, ao longo dos anos, capacitou mais de 1.000 multiplicadores dessa prática.

Ana Cláudia Torres participou da primeira edição do curso, ainda como aluna, quando fazia parte da Colônia de Pescadores Z-4 de Tefé, coordenando o Acordo de Pesca do Pantaleão - RDS Amanã. “Naquela época, absorvi muito do que foi compartilhado pelos técnicos, pesquisadores e pescadores mais experientes, e foi marcante perceber que todo o processo do manejo se constrói a muitas mãos, com erros e acertos”, lembrou. Durante o curso, Ruiter Braga da Silva, pescador e técnico do Instituto Mamirauá, relembrou: “A gente começou errando, acertando e corrigindo”, reforçando que o manejo não nasceu pronto, mas foi sendo desenvolvido coletivamente ao longo dos anos.

Com o tempo, Ana passou de participante a formadora, ajudando a aprimorar a metodologia do curso, sempre priorizando o fortalecimento do protagonismo comunitário. “Hoje, poder ministrar esse curso junto com colegas e pescadores é também devolver para outras pessoas aquilo que eu mesma aprendi lá atrás, e continuar construindo esse conhecimento junto com elas”, destacou.

Ao longo desses 14 anos, o curso já recebeu participantes de diferentes estados, principalmente da região Norte, mas também de outras partes do Brasil. Por isso, acredita-se que a gestão participativa e o uso sustentável dos recursos podem ser aplicados em diversos contextos, entendendo que não se deve impor um modelo, e sim, fomentar o diálogo para que cada grupo construa soluções de acordo com a sua realidade.

Parte prática: vivência na comunidade Boca do Jurupari 

Durante o curso, o grupo visitou a aldeia Boca do Jurupari, no entorno RDS Amanã, onde participaram de atividades práticas, como a simulação da contagem de pirarucus em lagos manejados. Além das aulas teóricas, houve intensa troca de saberes entre técnicos e pescadores tradicionais, que compartilharam suas histórias e vivências.

Um exemplo disso é a história da própria comunidade Boca do Jurupari, que iniciou o manejo numa área quase sem peixe, após ter sido intensamente explorada pela pesca predatória. Os manejadores da comunidade, grupo composto por homens e mulheres que atuam em diferentes etapas do processo, desde a vigilância até a cozinha e o beneficiamento do peixe, dizem que não sabiam quando conseguiriam tirar o peixe. No entanto, a ideia servia de animação para todos. Movidos pelo desejo coletivo de recuperar os estoques, os moradores começaram a construir o manejo na comunidade, integrando o Acordo de Pesca do Jurupari Grande e Apara. Com a organização comunitária e o apoio técnico do Instituto Mamirauá, ao longo do tempo, viram aumentar as populações de pirarucu e tambaqui, o que trouxe equilíbrio para a pesca de subsistência e viabilizou a comercialização sustentável.

Durante uma roda de conversa, seu Zé, pescador que ajudou a construir o projeto de manejo da comunidade desde o início, emocionou os participantes ao relembrar essa trajetória, que já rendeu ao grupo diversos prêmios do Encontro de Manejadores, evento organizado pelo Programa de Manejo de Pesca do Instituto Mamirauá que realiza a premiação dos melhores do ano. Nessa ocasião, são avaliadas etapas fundamentais do manejo — como Organização Coletiva, Vigilância, Monitoramento, Capacidade de Pesca e Comercialização — e são premiados os grupos que mais se destacaram, com primeiro, segundo e terceiro lugares em cada categoria.

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Fotos: Julia Rantigueri

O caso de Rondônia e os diferentes contextos do manejo

Nesta edição, o curso contou com a presença de quatro representantes da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental (SEDAM) de Rondônia. No estado, o cenário é diferente da Amazônia Central: por lá, em alguns locais, o pirarucu é uma espécie exótica e invasora, ameaçando os ecossistemas locais.

Por isso, a estratégia dos técnicos de Rondônia não busca conservar a espécie, mas promover sua erradicação ou controle, sempre com participação comunitária, de forma a também gerar renda e desenvolvimento local. Para Ana Cláudia, “mesmo que o propósito final seja diferente, aqui o foco é conservar e lá o objetivo é controlar, a metodologia de envolver a comunidade, dialogar com os pescadores e organizar as atividades de forma participativa é o ponto em comum”.

“Foi uma oportunidade única de aprendizado técnico e troca de experiências com profissionais, pesquisadores e gestores atuantes na região amazônica. Essa capacitação vai contribuir para formular estratégias mais eficazes de monitoramento, controle e erradicação do pirarucu invasor na Resex do Rio Cautário, além de fortalecer ações integradas com as comunidades locais, respeitando os princípios do desenvolvimento sustentável”, explicou Chirlaine Varão, coordenadora do Manejo de Controle/Erradicação do Pirarucu Invasor na Resex Rio Cautário.

Segundo Chirlaine, o curso ajudou especialmente no aperfeiçoamento das estratégias de prevenção e controle ao valorizar soluções participativas construídas junto às comunidades tradicionais. “O intercâmbio de experiências e saberes é fundamental para enfrentar os efeitos da introdução de espécies exóticas e garantir a conservação dos ecossistemas amazônicos”, destacou.

O que mais chamou a atenção dos representantes de Rondônia foi a força do protagonismo comunitário no manejo participativo. “A integração entre o saber tradicional e o conhecimento técnico-científico demonstra que o manejo participativo não é apenas viável, mas essencial para o sucesso. Além disso, chamou atenção a capacidade do curso de promover a troca de experiências entre diferentes territórios, fortalecendo redes de colaboração e confiança. O sentimento de corresponsabilidade e a valorização da cultura local deram um significado ainda mais profundo ao aprendizado”, completou Chirlaine.

A presença dos representantes de Rondônia reforçou que, mesmo em contextos distintos, princípios como o protagonismo comunitário, a construção coletiva de soluções e o respeito ao território podem ser adaptados para diferentes realidades, conciliando conservação, uso sustentável e qualidade de vida para quem depende dos recursos naturais.

Entre Águas Amazônicas: fortalecer, conservar e transformar 

Unindo ciência, saberes tradicionais e participação comunitária, o projeto Entre Águas Amazônicas atua em cerca de 4,8 milhões de hectares na Amazônia, abrangendo unidades de conservação, terras indígenas e áreas produtivas nos estados do Amazonas, Pará e Amapá. 

Com duração de quatro anos, a iniciativa busca fortalecer o manejo sustentável de recursos como pirarucu, caranguejo, jacaré, produtos florestais e turismo de base comunitária, sempre com protagonismo das comunidades locais. Entre as ações previstas estão capacitações, elaboração de planos de manejo, monitoramento da biodiversidade e apoio direto a cadeias produtivas que geram renda e contribuem para a conservação da floresta. O curso de Gestão Compartilhada dos Recursos Pesqueiros, voltado para formar multiplicadores do manejo participativo do pirarucu, faz parte deste projeto. 

O projeto Entre Águas Amazônicas é executado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), com agência da FAO, implementação do Instituto Mamirauá e financiamento do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), reafirmando que conservar a Amazônia também significa valorizar quem vive e cuida dela todos os dias.

Texto: Julia Rantigueri


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